Will Smith no Oscar 2022 com CNV – Estudo de Caso
No dia 27/03/2022, Will Smith deu um tapa na cara de Chris Rock durante a entrega do Oscar de 2022. O tapa foi dado após Chris fazer uma piada sobre a esposa de Will Smith, Jada, por ela não ter cabelo.
Não pretendo dizer o que é moralmente certo ou errado ou como Will Smith poderia se expressar melhor, se usasse a Comunicação Não Violenta (CNV). Em vez disso, quero fazer um exercício sobre empatia, sem dizer quem está certo ou errado.
Primeiro vamos ver o Contexto do casal Smith antes da noite do Oscar…
A esposa de Will Smith, Jada Pinkett Smith, convive com uma dor desde 2018, quando que foi diagnosticada com alopecia, uma doença que provoca dores no couro cabeludo e perda de cabelos.
Além do sofrimento de lidar com dores física, a mudança da aparência é algo que mexe com a autoestima de qualquer pessoa e requer mais cuidado emocional para acolher a nova fase, uma vez que a mídia e a cultura determina outros padrões de belezas. É natural que a Jada esteja passando por uma adaptação emocional à nova realidade e as dores físicas e emocionais da doença ainda estão em processo de cura.
Will Smith ama a companheira, aceita e valoriza ela independentemente da doença e da mudança de aparência. Ele tenta zelar pelo bem-estar físico e emocional de Jada.
Na noite do Oscar, em rede internacional, o humorista Chris Rock está fazendo sua apresentação as pessoas estão se divertindo. Até que ele faz a piada com o cabelo de Jada.
Antes de prosseguir para a empatia, precisamos entender: por que algumas piadas são engraçadas e outras provocam sofrimento?
A piada é um menosprezo do medo e da dor. Ela acena para o perigo e celebra o alívio de estar a salvo.
A intenção é tornar algo aparentemente grave em algo amigável, inofensivo. Um bom exemplo dessa transição entre algo grave para inofensivo são as cócegas.
Você não ri quando faz cócegas em si mesmo. Mas, quando outra pessoa faz, não podemos prever o comportamento dela, há uma ameaça instintiva, uma apreensão interna, uma surpresa que se revela abruptamente inofensiva.
A forma como liberamos a carga dessa apreensão é rindo.
Muitas piadas tangenciam, escorregam, passam pertinho de algo que consideramos que seria grave, se não fosse inofensivo. Porém, como saber se algo realmente é inofensivo? Será que o que é inofensivo para mim também é inofensivo para você? Será que o inofensivo de uns pode ser ofensivo para outros?
Se temos uma dor, uma tristeza, um medo de não ser amado, aceito, valorizado… Ou seja, se não estamos seguros de que nossa dignidade é reconhecida, a piada do outro se torna o bullying para nós.
A risada de diversão vira deboche. O deboche menospreza o medo e a dor. Porque ele é visto como inofensivo.
E essa característica de zuar, debochar, ridicularizar nossos medos é uma forma de socialização que tem feito parte da nossa cultura. O humorista é o profissional que explora essas experiências de medo e debocha delas para provocar riso, diversão, descontração.
Porém, Nós estamos vivendo uma fase onde olhamos com mais gentileza nossos medos e tristezas. Não é que o bom-humor esteja perdendo o espaço, mas a empatia está ganhando um espaço que não dávamos valor antes.
Estamos aprendendo, como sociedade, que há outras formas de criarmos vínculos. Essas formas envolvem não se esquivar do medo. Não menosprezar a dor. Não debochar do sofrimento, como forma de relaxar e esfriar a cabeça.
Nós estamos aprendendo a acolher o medo e a tristeza, como parte da Dignidade humana. Não queremos mais fingir que está tudo bem. Não queremos sorrir, quando estamos tristes para aparentar que as coisas estão boas assim. Precisamos olhar os lutos, elaborar as perdas, acolher a tristeza para que possamos dar mais valor a vida, para termos compaixão por nós e pelas pessoas.
Portanto, os tempos estão mudando e estamos aprendendo a conviver com outros sentimentos para além do riso, da graça, da diversão.
No passado, com toda a repressão emocional da nossa cultura, não havia espaço para expressar a dor. Pessoas em sofrimento não produzem tanto. Pessoas tristes não são competitivas. Soldados com compaixão não vencem guerras. Mulheres com depressão não agradam o esposo e a família.
Então, para sobreviver, precisávamos aparentar que tudo estava bem. Nosso pertencimento era condicionado a saber dissimular, relaxar, desfocar e ignorar nossas dores. Porque sofrer não é bem-vindo.
Agora, estamos pouco a pouco entendendo que “tudo bem” não fingir que está “tudo bem”. O luto também é parte da vida. Morte não é o oposto da vida… É oposto a nascer. E a vida é cheia de ciclos nascer-morrer.
O respeito à tristeza é cada vez algo mais necessário para acolhermos as pessoas e demonstrarmos compaixão em relação às suas dores.
Então, a piada – se forçada – pode ser uma forma de mascarar a dor, a tristeza. A piada pode ser inofensiva para uns, mas ofensiva para outros. E para cuidar de todos, precisamos prevenir a violência emocional que o problema cultural da falta de acolhimento às dores promoveu.
Se a piada for ofensiva para alguém, há uma necessidade de respeito que foi ferida. Se persistirmos, podemos agravar o sofrimento do outro.
Muitas pessoas já estão cansadas de fingir que está tudo bem… Se há dor, precisamos oferecer segurança e espaço para que essa dor se restaure. Assim, estaríamos cuidando melhor dessa pessoa.
No instante em que Will ouve a piada, ele ri espontaneamente.
Internamente, Will ri porque é como se Chris fingisse que estava atacando, expondo algo de Jada que poderia ser grave e constrangedor, se não considerasse que era amigo o suficiente do casal para não suar ofensivo.
Então, igual as cócegas, que tem a intenção de aparentar ser ameaçadora, mas que se revela inofensiva, a intenção de Chris era trazer a atenção das pessoas à apreensão daquele assunto e “ameaçar de mentirinha” a reputação de Jada, pois o clima de intimidade e o riso expressado no contexto infere a ideia de que podemos relaxar, pois estamos entre amigos e rimos no alívio da ameaça de constrangimento, pois isso é parte do nosso funcionamento emocional. Rimos porque “Afinal de contas, isso não é grave!”. Pelo menos, não na perspectiva do piadista.
Mas, Will Smith, ao perceber que aquele “deboche da dor” não encontrava em sua companheira uma expressão de descontração e, sim, de desconforto. Ele percebeu que aquele era um instante em que a companheira não estava considerando irrelevante a brincadeira.
Num átimo de segundo, ele se dá conta que seu riso pode também representar um deboche. E começa a elaborar a gravidade daquela brincadeira. Pois, a piada brinca com um medo. Mas, é um medo que ainda machucava a companheira. E, por um descuido, poderia se tornar uma forma de brincar entre amigos. Uma piada iniciada ali em rede internacional e propagada. Uma piada que poderia estigmatizar sua companheira.
Considerar que o mundo inteiro Ria (e até ele no primeiro instante) da dor de sua companheira, mexeu com a necessidade dele de demonstrar que estava com ela – na dor, na necessidade de limite em relação à exposição que ela estava tendo dessa dor.
A raiva é uma expressão genuína da nossa necessidade de limites.
A companheira dele ia ser lembrada e as pessoas iam falar a respeito de um aspecto vulnerável ao qual ela precisava ser preservada, pois ainda era uma dor que estava em processo de cura.
Agora, a piada se tornara uma brincadeira internacional que poderia ser propagada e iria expor a companheira ao riso das pessoas, num constrangimento que poderia agravar e criar um estigma, onde as características físicas provocadas pela sua doença ganharia mais atenção, aumentando o sofrimento do casal.
Como demonstrar amor a essa pessoa nesse momento? Como demonstrar que a dignidade dela merece todo o zelo do mundo? Como demonstrar que quer cuidar dos limites na preservação de dores que estão em processo de cura?
Para piorar: como fazer isso no instante em que a fragilidade dela está exposta?
Pedir respeito? Dizer que quer preservar as dores resolveria? Será que ia ser acolhida? Será que esse pedido de compreensão e gentileza teria o mesmo destaque mundial que a piada? Será que seria lembrado? Será que chegaria como uma piada? Será que a reação da outra pessoa não seria dizer: relaxa, tô só brincando.
– Você tá brincando com uma dor minha… Que não é divertida para mim. Na verdade, essa brincadeira agravou ainda mais essa dor. De que forma eu posso te mostrar o quanto estou desapontado? Como fazer você ter uma compreensão clara de que eu não acolho esse tipo de brincadeira?
– De que forma eu restauro a dor moral da minha companheira, na mesma proporção que ela está sendo ferida? De que forma eu mostro para todo o mundo que está rindo que estou comprometido em cuidar da Dignidade dela? Que estou junto com ela nessa necessidade de limite e preservação dos lutos?
– Cobrar a criação de uma campanha em rede internacional? Pedir que ele raspe a cabeça em demonstração à dor da companheira? Um homem de cabeça raspada provoca nas pessoas a mesma reação? Não! Pedir a mulher dele para raspar a cabeça? E as dores física da doença? O quê!? Difícil de pensar em uma saída… Como prevenir que ela não considere que foi humilhada em rede internacional?
– Fazer nada e depois tentar dar empatia para a companheira deprimida? Será que ela suportaria tal vergonha? Será que ela suportaria minha omissão? Será que ela confiaria que eu a amo? Será que ela acreditaria que eu compreendo a sua dor?
– Eu escolhi dedicar minha vida a cuidar dessa relação. Eu ofereço o que tiver à minha disposição para demonstrar que eu a amo. Até mesmo colocar em risco minha reputação.
– A única forma que eu encontrei de tomar uma atitude a tempo que demonstra minha compreensão, que tenta equilibrar essa humilhação, que demonstra que estou com você na dor, na necessidade de limites para te preservar, disposto a oferecer meu melhor e arriscar tudo que eu tenho, para mostrar que você vale mais que tudo isso, no tempo que disponho e na oportunidade que eu reconheço que essa retratação seria possível…
É usar a força para estabelecer um limite.
Então, dou na pessoa que está personificando o vilão que coloca em risco o senso de dignidade da minha companheira, um tapa contundente. Forte o suficiente para deixar claro que eu desaprovo aquela atitude. O tapa em rede internacional que reflete a humilhação que não desejo que sobrecarregue a consciência da minha companheira.
E quando Chris tenta levar na esportiva e fazer outra piada para reiterar que considerava que estava entre amigos e que tal situação era inofensiva, por mais que duvidasse um pouco internamente disso, Eu respondo furioso, ofendendo ele, dizendo que não vou tolerar mais piadas. Dessa forma, tento não deixar dúvidas às pessoas que podem achar que é tudo brincadeira. Prefiro que percebam que eu estou desesperado para preservar o bem-estar da minha companheira e não quero acolher ninguém que possa ameaçá-la, pois não tolero ver ela desconfiar de que não é boa o bastante ou que alguém pode humilhá-la.
Depois, eu choro e sofro por não encontrar um jeito mais gentil e pacífico de preservar a pessoa amada. Mas, honro minha escolha, pois fiz, pois foi o modo que encontrei para demonstrar compreensão, empatia, amor.
O tapa na cara foi a tentativa de passar o foco da humilhação para quem, por falta de compreensão mais profunda sobre as dores da outra pessoa, iniciou o bullying.
Alguém que está numa posição um pouco mais privilegiada. Não foi uma tentativa de ferir fisicamente, mas moralmente. Porém, precisava ser contundente para deixar claro que não era uma piada.
Eu desejo que Chris consiga ter a mesma resiliência que ele apresentou ao não revidar, ao tentar deixar claro que não estava se opondo à reação de Will, mas também sustentado seu papel de levar alegria para as pessoas que estavam ali, mostrando que elas não estavam em perigo.
Ele será testado na sua dignidade de homem. Aspiro para que ele possa ter autoempatia suficiente para aceitar o seu rosto ardido, ter a fama de covarde – o que para um humorista pode não ser algo grave, uma vez que ele pode tornar isso parte das suas piadas. Desejo que ele consiga ter resiliência para acolher o papel que lhe sobrou nessa experiência. O papel de alguém que serviu de suporte para uma tentativa insustentável, mas a única encontrada, de um homem tentar demonstrar amor e companheirismo à sua esposa.
Por mais que parece uma atitude oposta à CNV, até que ponto a coragem de ser processado, difamado, penalizado, machucado, para defender a honra da companheira não era a escolha pontual mais cuidadosa que ele poderia fazer? Esse julgamento não cabe a mim. Da minha parte, eu só posso oferecer respeito aos envolvidos.
Para Will, espero que um dia ele tenha estrutura emocional para descobrir que, como humorista, ele pode ter humilhado muitas pessoas sem saber. Pessoas que que não tiveram a liberdade de buscar retratações pontuais. E que a dor que ele sentiu ao ver alguém que ama correr o risco de ser estigmatizada, pode ser a dor que ele já provocou em outras pessoas.
Bom-humor é uma necessidade humana. Respeito ao luto das pessoas também é.
Às vezes, ficamos constrangidos quando um branco faz uma piada sobre negro, pois nos preocupamos se é ofensivo, principalmente se tem alguém que já sofreu racismo junto de nós. Quando um negro faz piada de negro, ficamos mais confortáveis, pois temos mais segurança de que não é um desprezo à própria etnia.
A mesma piada pode ser agradável para uns e desagradável para outros. Como saber o limite entre a piada e o bullying?
Existe regra?
Não sei… Mas, que possamos honrar as consequências de tentarmos brincar com as dores uns dos outros, conscientes de que, por mais legítima que seja nossa intenção de relaxar e se divertir entre amigos, podemos agravar o sofrimentos de quem pode precisar de preservação, por ainda estar com feridas abertas.
De preferência, que possamos criar intimidade suficiente para aprendermos uns com os outros o que é ou não ofensivo para cada um. Principalmente, enquanto ainda estamos curando traumas e dores profundas que a nossa cultura de violência promoveu no passado e ainda irá promover ao longo da nossa evolução.
parabens pela reflexão trazida para todos nós